por
Marcos Kleber R Felix
Por que o Brasil investe pouco em ferrovias?
Essa pergunta não é simples de ser respondida. Portanto, meu caro leitor, permita-me abordá-la de forma gradual. Hoje, focarei em uma perspectiva específica, mas contundente, que ajuda a explicar por que o Brasil ainda não é um país ferroviário desenvolvido: a tentação populista de conquistar a simpatia imediata do eleitor e como isso afeta o orçamento público nas ferrovias brasileiras. Em outras palavras, a equivocada crença de que ferrovias não dão votos, mas transferência de renda, sim. Essa lógica constrange os investimentos públicos no setor ferroviário. O Brasil investe pouco em ferrovias não por escassez de recursos, e sim por dificuldade em priorizar investimentos, adequadamente. Dinheiro há muito, tanto público, quanto privado, o problema é como priorizá-lo de forma sustentável. Vamos tratar de ambos os aspectos ao longo deste texto.
Déficits ferroviários e as necessidades sociais do Brasil
A economia é uma ciência que traz várias máximas relevantes. Uma das minhas preferidas afirma: as necessidades são ilimitadas, mas os recursos são finitos. O Brasil enfrenta múltiplas demandas urgentes; construir e operar ferrovias é apenas uma delas. Resolver a desigualdade social, por exemplo, é um objetivo prioritário de qualquer governo. E garantir a vitória nas próximas eleições parece sempre ser a principal preocupação de quem ocupa o poder. É nesse contexto histórico, cultural e político que tento mostrar ao leitor por que é tão difícil para o Estado brasileiro priorizar investimentos públicos em ferrovias.
Embora o Brasil tradicionalmente tenha ocupado posições entre 80º e 100º no ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial (FEM) — o FEM não publica mais essa estatística, desde 2019 —, em termos de desigualdade de renda, a situação do país é ainda mais preocupante. Pelo Índice de Gini, que mede a concentração de renda, o Brasil está na 15ª posição global em desigualdade, de acordo com dados recentes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
O Brasil possui uma das maiores taxas de pobreza entre os países do G20. Segundo o IBGE, cerca de 5,8% da população vive abaixo da linha de pobreza internacional, definida como menos de US$ 2,15 por dia. Nesse indicador, o Brasil ocupa a segunda posição mais crítica entre os países do grupo, superado apenas pela Índia, onde 12,9% da população se encontra nessa condição.
Não há dúvida de que enriquecer a população é uma prioridade fundamental para qualquer governo. O desafio está em decidir como fazer isso.
O dilema do investimento público em ferrovias versus a tentação da transferência de renda no Brasil
Investir em ferrovias é uma das alternativas para transferir renda para população. A construção de infraestruturas eficientes e econômicas de transporte tem um efeito sinérgico, que impulsiona a economia de maneira consistente. Reduzir os custos logísticos e de mobilidade torna viáveis novas cadeias produtivas, gerando empregos, aumentando a renda das famílias, elevando a produtividade e, consequentemente, os salários. Esse ciclo de prosperidade é o que possibilitou o crescimento das duas maiores economias do mundo — China e Estados Unidos —, ambas impulsionadas por suas extensas redes ferroviárias. No entanto, tal investimento demanda um compromisso de longo prazo, algo difícil para governos brasileiros, pressionados por demandas imediatas e pelo ciclo eleitoral.
Outra opção, mais imediata, porém menos sustentável, é a transferência direta de renda, como nos programas Bolsa Família e Auxílio Brasil. Nesse modelo, o dinheiro arrecadado por meio de impostos é repassado diretamente às famílias mais necessitadas, aliviando sua situação financeira e estimulando a economia local. No entanto, sua capacidade de gerar vantagens competitivas a longo prazo é limitada, já que não cria fontes perenes de riqueza.
Análise dos investimentos ferroviários no Brasil versus os dispêndios em transferência de renda
Vamos examinar como os investimentos públicos e privados em ferrovias se comparam às despesas com programas de transferência de renda, utilizando os dados disponíveis no Portal da Transparência e na ANTF. A análise é sintetizada na tabela a seguir:
Ano | Investimento Público em Ferrovias (R$ bilhões) | Investimento Privado em Ferrovias (R$ bilhões) | Programas de Transferência de Renda (Bolsa Família/Auxílio Brasil) (R$ bilhões) |
2014 | 1,97 | 6,24 | 26,49 |
2015 | 1,37 | 7,79 | 26,78 |
2016 | 0,74 | 6,01 | 27,88 |
2017 | 0,35 | 5,47 | 28,26 |
2018 | 0,35 | 4,62 | 29,90 |
2019 | 0,36 | 3,70 | 33,00 |
2020 | 0,23 | 6,10 | 19,40 |
2021 | 0,19 | 6,06 | 25,74 |
2022 | 0,13 | 6,20 | 113,49 |
2023 | 0,07 | 10,40 | 166,93 |
2024** | 0,02 | 6,259 * | 154,93 |
Fontes: Portal da Transparência & ANTF
* Valor estimado pela média de 2014 a 2023. O valor corrente corrente ainda não foi divulgado pela ANTF.
** Os valores de 2024 ainda não foram concluídos no ano fiscal corrente, no portal da transparência.
O bom leitor notará, a partir da tabela, que os investimentos públicos em ferrovias vêm diminuindo de forma alarmante ao longo da última década, sistematicamente, nos governos Dilma, Temer, Bolsonaro e Lula. No mandato atual, a média anual de investimento público é cerca de 10 vezes menor do que foi no governo Bolsonaro (2019-2022). Comparando-se ao governo de Michel Temer (2016-2018), no governo Bolsonaro a redução de investimento foi de 1,5 . Em relação aos últimos anos do governo Dilma Rousseff (2014-2015), a queda do governo Temer foi ainda mais expressiva: 2,3 vezes menor.
Em números absolutos, o governo Lula, em 2023, no primeiro ano deste mandato, investiu apenas R$ 70 milhões diretamente na construção da FIOL 2. Para efeito de comparação, o governo Dilma, em 2014, destinou quase R$ 2 bilhões para a Valec, cerca de 28 vezes mais.
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Enquanto o setor público padece, o setor privado continua a se destacar como o principal investidor em ferrovias. Na última década (2014-2023), as concessionárias associadas à ANTF investiram, R$ 52 bilhões, em média, 9 vezes mais do que o governo federal, no mesmo período, cerca de R$ 5,6 bilhões. Em 2023, por exemplo, o setor privado aplicou aproximadamente R$ 10 bilhões em ferrovias, valor que supera, em apenas um ano, quase que pelo dobro, todo o montante público investido desde 2014.
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Os dados mostram um declínio constante nos investimentos públicos em ferrovias, que caíram de quase R$ 2 bilhões em 2014 para apenas R$ 70 milhões em 2023, com uma previsão ainda menor para 2024. Este corte reflete o aumento das restrições fiscais enfrentadas pelo governo e a priorização de outras áreas orçamentárias de viés social mais imediato, como, por exemplo, os Programas de Transferência de Renda.
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Ao mesmo tempo, os gastos com programas de transferência de renda cresceram significativamente, passando de R$ 26 bilhões em 2014 para impressionantes R$ 166 bilhões em 2023. Essa expansão deve-se, em parte, aos efeitos econômicos contracíclicos, necessários em decorrência da pandemia de covid-19, na forma de reforço de programas como o Bolsa Família e Auxílio Brasil, que visam atender às necessidades mais imediatas da população vulnerável, mas inequivocamente, também têm um caráter eleitoral não desprezível.
É fundamental lembrar que os recursos do orçamento público são limitados. Transferir renda significa, inevitavelmente, deixar de investir em outras áreas. No Brasil, um orçamento já bastante engessado com despesas obrigatórias — saúde, educação, salários e pensões — torna os gastos discricionários ainda mais vulneráveis a cortes. Neste contexto, as ferrovias públicas são os primeiros investimentos discricionários sacrificados.
Restrição fiscal: um impasse sem perspectiva de mudança
Nesta semana, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou um pacote de cortes de R$ 70 bilhões até 2026, acompanhado de renúncias fiscais que somam R$ 50 bilhões. Esse ajuste líquido de apenas R$ 20 bilhões evidencia que, no Brasil, as necessidades são mais que ilimitadas, enquanto os recursos permanecem limitados.
A experiência histórica tem mostrado que qualquer tentativa de reduzir os gastos com programas de transferência de renda é politicamente inviável, especialmente em um contexto eleitoral. Faltando menos de dois anos para as eleições de 2026, cortar recursos sociais seria um movimento impopular e arriscado para o governo, senão impossível, certamente muito improvável.
Por outro lado, os investimentos em infraestrutura estratégica, como as ferrovias, continuam sendo adiados. Sem sinais de mudança do setor público no curto prazo, o Brasil segue em um ciclo vicioso: enquanto atende às demandas sociais mais urgentes, negligencia a infraestrutura logística de qualidade, que poderia sustentar um crescimento econômico mais robusto e sustentável.
A situação não é meramente técnica; é uma escolha política. O abandono progressivo das ferrovias públicas contrasta com a expansão dos programas sociais, que carregam consigo não apenas uma função assistencial e necessária, mas também um evidente apelo eleitoral.
Como veremos, a esperança de reverter esse quadro pode não vir do governo, mas de uma alternativa já em curso: o protagonismo do setor privado.
A esperança que o Governo, a Sociedade e o Congresso colaborem para que o investimento ferroviário cumpra seu papel
A esperança que temos para o futuro das ferrovias está no setor privado. E essa esperança não é recente. A tabela anterior nos mostrou que, ao longo da última década, a iniciativa privada investiu cerca de 10 vezes mais do que o setor público. Somente em 2023, as concessionárias ferroviárias da ANTF investiram cerca de R$ 10 bilhões em suas ferrovias, além de em outros investimentos ferroviários apontados pelo governo passado, como a FICO. Isso significa que, em 2023 somente, as ferrovias privadas terão investido 1,8 vezes todo o valor que o governo federal investiu através do orçamento público desde 2014.
Se é verdade que as ferrovias privadas, geridas em contratos de concessão – que são, guardadas as devidas proporções, como um contrato de aluguel de nossas casas -, vêm investindo muito mais que o governo em ferrovias, muito maior é a possibilidade dessas empresas investirem no setor por meio de contratos de autorização ferroviária. Isto porque, no contrato de autorização, não há um aluguel e, no fim do contrato, a ferrovia não é devolvida ao dono, o governo. Não há restrições e desincentivos ao investimento, como o risco do contrato acabar antes do prazo de amortização dos investimentos. Na autorização, o mercado é o dono da ferrovia, podendo nela investir livremente, sem ter a restrição temporal de ter que um dia devolver a ferrovia ao governo.
Somente os dois projetos ferroviários autorizados mais avançados em execução no país no momento, da Rumo e da Eldorado, são esperados investimentos de mais de R$ 10 bilhões para a construção de uma ferrovia no Mato Grosso e outra no Mato Grosso do Sul, respectivamente. Se somente 10% das autorizações ferroviárias requeridas e já contratados no plano federal forem de fato concluídos, poderiam ser construídos 1.254km de novos trilhos à escassa malha ferroviária nacional. Um êxito de 10% também representaria investimentos privados de cerca de R$ 24 bilhões, segundo pode-se estimar dos dados da ANTT.
Uma das maiores oportunidades para que o Brasil avance na construção de mais ferrovias e sistemas de transporte é a utilização do modelo de autorizações. Diferente das concessões, que envolvem um processo mais burocrático e longo, o modelo de autorizações permite a entrada do setor privado de forma mais ágil e com menos interferências do poder público, principalmente o corte de recursos para ganhar as próximas eleições.
Se o Brasil deseja realmente superar seus desafios logísticos e econômicos, é imperativo que governos e sociedade promovam um debate mais amplo sobre o papel das ferrovias no desenvolvimento nacional. Isso inclui não apenas fomentar o investimento privado, mas também garantir um ambiente regulatório estável, que incentive a construção de novas linhas ferroviárias.
Neste sentido, o Senado da República há tempos tem sido protagonista. Não só foi quem tomou a iniciativa da elaboração da nova lei das ferrovias, como vem buscando defendê-la, agora por meio da criação de uma Frente Parlamentar Mista das Ferrovias Autorizadas, com o fim, justamente, de defender os investimentos que o Brasil tanto precisa em ferrovias.
No final das contas, o Brasil precisa de visão, planejamento de longo prazo e coragem política para superar a tentação populista. É um chamado para governantes e cidadãos, que não se contentem apenas com soluções imediatistas, mas que almejem soluções perenes: um trilhar mais próspero e sustentável para o futuro.
FAQ – Perguntas mais frequentes:
Quanto o Brasil investe em ferrovias?
O Brasil investe pouco em ferrovias, com os investimentos públicos diminuindo significativamente ao longo da última década. Em 2023, o governo federal investiu apenas R$ 70 milhões diretamente na construção da FIOL 2, enquanto o setor privado investiu cerca de R$ 10 bilhões em ferrovias no mesmo ano.
Quem mais investe em ferrovias no Brasil?
O setor privado investe significativamente mais em ferrovias no Brasil do que o setor público. Nos últimos dez anos, as concessionárias ferroviárias associadas à ANTF investiram, cerca de 10 vezes mais do que o governo federal.
Quais são os desafios para o investimento em ferrovias no Brasil?
Os principais desafios para o investimento em ferrovias no Brasil incluem a construção de um ambiente de negócios atraente para o mercado privado, além de uma alocação eficiente de recursos pelo setor público. Sem esses pilares, há dificuldades em priorizar investimentos adequadamente, apesar da disponibilidade de recursos públicos e privados.
Qual é o impacto da falta de investimento em ferrovias no Brasil?
A falta de investimento em ferrovias no Brasil resulta em altos custos logísticos, menor competitividade econômica e uma infraestrutura de transporte ineficiente. Isso impede o desenvolvimento de novas cadeias produtivas e a geração de empregos, além de aumentar a desigualdade social.
Quais são as alternativas para melhorar os investimentos em ferrovias no Brasil?
Uma alternativa para melhorar os investimentos em ferrovias no Brasil é fomentar a participação do setor privado por meio de contratos de autorização ferroviária, que permitem investimentos mais ágeis e menos burocráticos. Além disso, é necessário um compromisso político de longo prazo para priorizar a infraestrutura ferroviária.