A Lei das Ferrovias – a caixa de ferramentas para colocar o Brasil nos trilhos do desenvolvimento

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por

Marcos Kleber Ribeiro Felix

Para que serve a Lei das Ferrovias?

Não é preciso ser especialista para constatar que nunca antes na história deste país o setor ferroviário se interessou tanto por uma legislação, como no caso da Lei nº 14.273, de 23 de dezembro de 2021. Esse interesse se deu tanto no debate público, liderado por atores interessados e políticos de diversos matizes, quanto na formalização de propostas do mercado ao Governo Federal para a construção e operação de novos trechos.

A nova norma tornou-se não apenas em um Ato de Estado, mas a grande caixa de ferramenta para a união do país em torno do ideal de desenvolvimento ferroviário, com verdadeiras lições de Ciência Política. A Lei das Ferrovias deu nova cara ao mercado brasileiro, criando ambiente fértil para o surgimento de novos projetos ferroviários, uma nova associação e até mesmo uma novíssima Secretaria Nacional de Transporte Ferroviário.

A Lei das Ferrovias nasceu do Projeto de Lei do Senado (PLS), nº 261, de 2018, de autoria do Senador José Serra (PSDB/SP), e recebeu, durante os 4 anos de sua tramitação, somente no Senado, a influência de 51 Emendas, 23 requerimentos, 9 relatórios, 3 pareceres e 1 Medida Provisória.

O PLS nº 261 reuniu políticos de diferentes matizes, como os relatores, Senadora Lúcia Vânia (PSB/GO) na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado; Deputado Zé Vitor (PL/MG) na Câmara dos Deputados; e Senador Jean-Paul Prates (PT/RN) no Plenário do Senado Federal, este o principal defensor da matéria no Congresso e autor da expressão que intitula este artigo.

A proposição recebeu também interesse e contribuições da sociedade civil e do Governo. Isso se deu por meio de associações nacionais de operadores, de usuários e de trabalhadores, além do próprio Executivo, capitaneado pelo então Ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas (Republicanos/SP), atualmente Governador de São Paulo.

Governo e oposição trabalharam juntos para que o novo marco do setor gerasse os investimentos de que o Brasil precisa. Como pontua Graciliano Rocha (2021), a tramitação da Lei das Ferrovias foi exemplo habilidoso de construção de consensos entre partidos de situação e de oposição.

A proposição não atraiu interesse somente do Congresso. Somente aqui no iNFRADebate foram publicados 30 artigos de opinião sobre a nova legislação e seus efeitos no setor ferroviário, notadamente, quanto às autorizações ferroviárias.

Não podemos esquecer o efeito da tramitação da Lei das Ferrovias nas Assembleias Legislativas estaduais. Não por coincidência, os três Estados com maior potencial ferroviário, Pará, Minas Gerais e Mato Grosso, foram pioneiros na aprovação de leis prevendo a autorização ferroviária e foram os estados que mais receberam pleitos de autorização de ferrovias federais em seus territórios, no período de 30 de agosto de 2021 a 15 de setembro de 2022, como se pode constar na tabela 1, a seguir:

Tabela 1 – Projetos federais solicitados por UF, entre 30/08/2021 e 15/09/2022

UF Quantidade de Projetos[2] Quantidade de Solicitantes Solicitantes[3]
MG 22 14 Petrocity Ferrovias Ltda, VLI Multimodal S.A., Macro Desenvolvimento Ltda, Rumo S.A., Cedro Participações S.A., Morro do Pilar Minerais S.A., MTC – Multimodal Caravelas, MRS Logística S.A., RAIL-IN Engenharia Eirelli, Garin Infraestrutura, Assessoria e Participações Ltda, MMLOG Ltda., Vale S.A., JMF Projetos Construções Ferroviárias Ltda, Bação Logística
PA 20 5 Minerva Participações e Investimentos S.A., 3G Empreendimentos e Consultoria Ltda, ZION Real Estate Ltda. – ME, Vale S.A., Rio Minas Mineração S.A.
MT 11 7 VLI Multimodal S.A., Rumo S.A., Zion Real Estate, RAIL-IN Engenharia Eirelli, Garin Infraestrutura, Assessoria e Participações Ltda, ZION Real Estate Ltda. – ME, Euca Energy Administração e Participações S.A.
SP 10 9 VLI Multimodal S.A., Fazenda Campo Grande Empreendimentos e Participações Ltda, Bracell SP Celulose Ltda, Rumo, Ultracargo Logística S.A, MRS Logística S.A., JMF Projetos Construções Ferroviárias Ltda, TAV Brasil Empresa Brasileira de Trens de Alta Velocidade SPE Ltda, Granel Química Ltda,
MA 6 6 VLI Multimodal S.A., Grão Pará Multimodal, Minerva Participações e Investimentos S.A., 3G Empreendimentos e Consultoria Ltda, TUP Porto São Luís S.A., Suzano S.A.,
MS 6 4 Ferroeste S.A., Eldorado Brasil Celulose S.A., MRS Logística S.A., Suzano S.A.,
BA 5 4 Brazil Iron Mineração Ltda, MTC – Multimodal Caravelas, Rumo S.A., VLI Multimodal S.A.
ES 5 4 Petrocity Ferrovias Ltda, Macro Desenvolvimento Ltda, Morro do Pilar Minerais S.A., Imetame Logística Ltda
PR 5 3 Ferroeste S.A., Doha Investimentos e Participações S.A., Porto Guará Infraestrutura SPE S/A
GO 4 3 Petrocity Ferrovias Ltda, Macro Desenvolvimento Ltda, JMF Projetos Construções Ferroviárias Ltda
TO 4 2 Rumo S.A., Rio Minas Mineração S.A.
RJ 3 3 Porto do Açu Operações S.A., TAV Brasil Empresa Brasileira de Trens de Alta Velocidade SPE Ltda, Kauai Invest Investimentos Imobiliários Ltda
SC 2 2 Ferroeste S.A., Doha Investimentos e Participações S.A.
DF 1 1 Petrocity Ferrovias Ltda
PE 1 1 Planalto Piauí Participações
PI 1 1 Planalto Piauí Participações
RO 1 1 Forum Pro Ferrovia Maferron
RR 1 1 Enefer Consultoria Projetos LTDA
RS 1 1 Doha Investimentos e Participações S.A.

 

A formalização de propostas do mercado ao Governo Federal para a construção e operação de novos trechos é, no entanto, o maior indicador do interesse do setor ferroviário brasileiro na nova legislação, cujos efeitos foram iniciados pela Medida Provisória (MPv) nº 1.065, de 30 de agosto de 2021 (Noronha, 2021).

Dos 78 projetos levados ao Ministério da Infraestrutura, 27 contratos foram assinados na vigência da MPv nº 1.065, de 2021, para implantação de cerca de 9 mil km de novos trilhos, com a estimativa de R$ 233 bilhões em investimentos. Três projetos não chegaram a ser conhecidos pelo Ministério, sendo encaminhados para instrução na ANTT, nos termos da lei. E mais sete foram formulados diretamente à ANTT, após 6 de fevereiro, quando a MPv nº 1.065, perdeu sua vigência e entrou em vigor a Lei nº 14.273, de 2021.

A política de abertura do mercado iniciada com a Medida Provisória nº 1.065, de 2021, e continuada pela Lei das Ferrovias, provocou grande interesse e mobilização dos agentes de mercado. Em seu pouco tempo de vigência, pouco mais de um ano, foram formuladas até 31 de dezembro de 2022, 88 solicitações por 38 atores interessados, como pode ser visto na Tabela 2.

O mercado ferroviário hoje é outro completamente diferente do existente em 2020. Antes do novo marco legal, era formado por apenas sete grupos empresariais: Rumo S.A., Vale S.A., MRS S.A., VLI Multimodal S.A., Transnordestina S.A., Ferrovia Tereza Cristina (FTC) e Ferroeste S.A., sendo todas privadas, com exceção da Ferroeste S.A., uma empresa estatal do Governo do Estado do Paraná. Das sete incumbentes tradicionais, apenas Transnordestina e FTC não solicitaram, até 31 de dezembro de 2022, expansões de ramais com base no novo regime de autorizações. Com a nova lei, três dezenas de novas empresas manifestaram ao Governo Federal intenção de construir novas ferrovias privadas.

Autorizações Ferroviárias & Lei das Ferrovias

Tabela 2 – Relação das solicitantes de autorizações ferroviárias

Solicitante Quantidade Solicitações Atuação Listada em bolsa Extensão (km) Média (km)
Rumo S.A. 9 Concessionária Ferroviária Sim 3.132 348
Petrocity Ferrovias Ltda 4 TUP 2.090 523
Doha Investimentos e Participações S.A 1 TUP 1.549 1549
Rio Minas Mineração S.A. 11 Mineração 1.506 137
3G Empreendimentos e Consultoria Ltda 1 Engenharia 1.370 1370
Macro Desenvolvimento Ltda 2 Engenharia 1.326 663
VLI Multimodal S.A. 6 Concessionária Ferroviária 1.247 208
Zion Real Estate 4 Engenharia 1.140 285
Ferroeste S.A. 4 Concessionária Ferroviária 933 233
RAIL-IN Engenharia Eirelli 2 Engenharia 901 451
Vale S.A. 7 Mineração / Concessionária Ferroviária Sim 807 115
MRS Logística S.A. 5 Concessionária Ferroviária Sim 800 160
Forum Pro Ferrovia Maferron 1 Engenharia 770 770
Planalto Piauí Participações e Empreendimentos S.A. 1 Mineração 717 717
Minerva Participações e Investimentos S.A. 1 Engenharia 571 571
Grão Pará Multimodal Ltda 1 TUP 520 520
MTC – Multimodal Caravelas 1 TUP 491 491
Garin Infraestrutura, Assessoria e Participações Ltda 2 Engenharia 423 212
Suzano S.A. 4 Celulose Sim 397 99
JMF Projetos Construções Ferroviárias LTDA 1 Engenharia 380 380
TAV Brasil Empresa Brasileira de Trens de Alta Velocidade SPE Ltda 1 Engenharia 378 378
Kauai Invest Investimentos Imobiliários Ltda 1 Engenharia 330 330
Morro do Pilar Minerais S.A. 2 Mineração 200 100
Brazil Iron Mineração Ltda. 1 Mineração 120 120
Enefer Consultoria Projetos Ltda 1 Engenharia 109 109
Eldorado Brasil Celulose S.A. 1 Celulose 89 89
Porto do Açu Operações S.A. 1 TUP 41 41
Euca Energy Administração e Participações S.A. 1 Celulose 30 30
Bracell SP Celulose Ltda 2 Celulose 24 12
TUP Porto São Luís S.A. 1 TUP 10 10
Fazenda Campo Grande Empreendimentos e Participações Ltda 1 Logística 7 7
Granel Química LTDA 1 Combustíveis 5 5
Cedro Participações S.A 1 Mineração 5 5
Porto Guará Infraestrutura SPE S/A 1 TUP 4 4
Imetame Logística Ltda 1 TUP 3 3
Ultracargo Logística S.A. 1 Combustíveis 2 2
Bação Logística 1 Logística 2 2
MMLOG Ltda. 1 Logística 1 1
Total 22.430 255

 

A nova configuração do mercado, ilustrada na Tabela 2, em uma hipótese de êxito de todos os 88 projetos de autorização requeridos até 2022, representaria um aumento de 22.430 km na malha, sem contar possíveis acréscimos pela via das legislações estaduais. Esse incremento tem a mesma dimensão da malha[4] atualmente ativa no país e é o dobro da malha em plena operação.

Gigantes da economia brasileira aderiram à nova legislação, como se pode observar na Tabela 2. Boa parte das interessadas em construir novos trilhos são empresas sólidas, listadas na B3, algumas são originadoras de cargas, como mineradoras e indústrias de celulose, outras são os destinos dessas cargas, diversos portos privados, sem esquecermos das grandes ferrovias, concessionárias federais.

Mais importante que o aumento potencial de trilhos são os efeitos de contestabilidade e dinamismo que a nova lei traz ao mercado. O país passou de apenas sete grupos de empreendedores para cerca de 40 empresas atuando para oferecer serviços ferroviários em 19 unidades da federação, facilitando a negociação entre grupos empresariais distintos, reduzindo preços, aumentando a capilaridade da malha e diminuindo o custo Brasil. O incremento de investimento é tão significativo que a indústria poderá fazer transporte ferroviário porta a porta, como, por exemplo, no transporte de celulose das fábricas no Mato Grosso do Sul para o porto de Santos.

Tantas foram as novas empresas interessadas a entrar no mercado ferroviário, que uma nova associação exclusivamente formada por ferrovias autorizadas foi criada, a ANFA (Associação Nacional de Ferrovias Autorizadas), em adição à ANTF (Associação Nacional de Transportadores Ferroviários), a exemplo do que se observa nos EUA, em que a ASLRA (American Short Line and Railroad Association) e a AAR (America Association of Railroads) juntas reúnem mais de 600 ferrovias privadas.

Ademais, o Estado poderá focar o escasso orçamento público para investimentos de caráter mais social e de segurança, como, por exemplo, a solução de conflitos urbanos causados pelo avanço das cidades no entorno dos trilhos, uma vez que agora a curva de demanda terá mais facilidade de alcançar a curva de oferta por mecanismos típicos de mercado.

Esta lógica muito evidente na logística, não é a mesma na mobilidade. Das listas expostas nas tabelas anteriores, apenas um projeto tem vocação direta para o transporte de passageiros, justamente um trem de alta velocidade. E isso só é possível porque a Lei das Ferrovias também previu diversos mecanismos de cooperação entre o público e o privado para o fomento do transporte de passageiros, sendo o principal deles a exploração imobiliária do espaço sob e sobre o entorno das estações e da faixa de domínio.

Ao contrário da logística, em que toda a solução pode ser decidida e desenhada entre empresas privadas, na mobilidade o Estado ainda é o planejador principal. O Poder Público precisa disciplinar o aproveitamento urbanístico da infraestrutura ferroviária nos planos diretores municipais e nos planos de desenvolvimento urbano integrado metropolitanos. Observados esses parâmetros, caberá aos operadores ferroviários apresentar e executar projetos urbanísticos específicos, que serão obrigatórios para novas linhas e que também podem ser implementados nas já existentes. As receitas geradas, como aluguéis de escritórios, residências, lojas e estacionamentos construídas no entorno das estações, complementará os preços ou tarifas pagas pelos usuários, podendo inclusive chegar a serem a principal fonte de faturamento, como se observa frequentemente em ferrovias da Ásia.

Bairros inteiros poderão ser construídos com os mecanismos de Desenvolvimento Orientado pelo Transporte (DOT), previstos na nova legislação, alinhando incentivos econômicos e sociais entre a cidade e os empreendedores ferroviários, como já há muito se pratica na Europa e na Ásia, para que os trilhos possam, enfim, alcançar nossos grandes aeroportos, cidades densas e novas zonas de expansão urbana, com a máxima integração urbanística e mínima dependência do automóvel, resultando em claros benefícios ambientais e sociais às populações urbanas.

Os efeitos da Lei das Ferrovias não pararam no mercado. O próprio governo federal precisou se reorganizar estruturando para atender a nova demanda institucional uma novíssima Secretaria Nacional de Transportes Ferroviários dentro do novo Ministério dos Transportes, que tem, não por acaso, um ex-assessor do Senador José Serra, autor do PLS nº 261/18 que deu origem à nova Lei das Ferrovias, como o primeiro Secretário Nacional de Transportes Ferroviários em décadas.

Todo o entusiasmo do setor ferroviário em torno da nova legislação se justifica. O Brasil precisa gerar novos investimentos e, historicamente, o principal caminho tem sido o capital privado. De 2014 a 2021, a União investiu cerca de R$ 5,5 bilhões em ferrovias. Segundo a ANTF (2023), no mesmo período somente as 6 ferrovias privadas concedidas existentes anteriormente à nova Lei das Ferrovias investiram R$ 46 bilhões, mais de 8 vezes o investimento público. As autorizações já contratadas com a União até o presente superam R$ 250 bilhões a serem investidos nas próximas décadas pela iniciativa privada. Isso é o equivalente a 30 anos do orçamento médio do extinto Ministério da Infraestrutura para cuidar de trânsito, rodovias, aeroportos, portos, hidrovias e ferrovias federais.

O desafio é gigantesco e não é só econômico. Há muito ainda a ser feito em favor do desenvolvimento ferroviário, principalmente pelo Estado, na regulamentação da Lei nº 14.273/21, para garantir a concretização dos investimentos ferroviários que irão finalmente colocar o Brasil nos trilhos do desenvolvimento.

Notas do Autor:

Este artigo foi originalmente publicado na Agência iNFRA em 20 de março de 2023.

Referências:

ANTF (2023). Panorama do Setor Ferroviário de Cargas no Brasil.

ANTT (2023). Autorizações Ferroviárias.

Brasil (2021). Medida Provisória nº 1.065, de 30 de agosto de 2021.

Brasil (2021). Lei nº 14.273, de 23 de dezembro de 2021.

Felix, Marcos Kleber Ribeiro (2018). Exploração de infraestrutura ferroviária: lições de extremos para o Brasil , Publicação T.DM – 001/2018, Departamento de Engenharia Civil e Ambiental, Universidade de Brasília, Brasília, DF.

Noronha, Maria Carolina Piloto de (2021). Pro Trilhos – como os usuários estão se posicionando no novo ambiente do transporte ferroviário. iNFRADebate.

Rocha, Graciliano (2021). O que o Marco das Ferrovias ensina sobre a política em Brasília.

Senado (2023). Projeto de Lei do Senado nº 261, de 2018.

 

[2] A quantidade de projetos supera o total de 88 requerimentos formulados, porque um mesmo requerimento poderia transpassar mais de uma UF. Os projetos são contabilizados nesta tabela cada vez que interceptam uma UF.

[3] A ordem de apresentação dos solicitantes obedece a critério cronológico de formulação da solicitação

[4] Segundo Felix (2018), dos 30 mil km nominais da malha ferroviária brasileira, cerca de um terço está em plena operação, outro terço opera em condições de ociosidade e o último terço está completamente abandonado, há anos sem tráfego.