A volta da iniciativa privada às ferrovias americanas de passageiros

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Retorno da Iniciativa Privada aos Trilhos da América

A volta da iniciativa privada às ferrovias americanas de passageiros é um fenômeno recente, liderado pela Florida East Cost Industries, uma descendente direta da Florida East Cost Railways, criada por Henry Flagler, em 1892. Este fenômeno empresarial moderno é muito relevante para entendermos o que pode vir a ser o mercado ferroviário brasileiro, após a edição da nova Lei das Ferrovias.

Nos últimos anos, temos testemunhado uma mudança significativa na paisagem ferroviária dos Estados Unidos. A iniciativa privada está retornando às ferrovias de passageiros, trazendo consigo promessas de inovação, eficiência e um renascimento do transporte ferroviário em condições bem específicas, sobre as quais, queremos abordar neste texto.

O retorno da iniciativa privada às ferrovias americanas de passageiros não é apenas um marco na história do transporte, mas também um reflexo das mudanças sociais e econômicas que ocorreram ao longo do século passado. A desregulamentação das ferrovias na década de 1980, por exemplo, teve um impacto significativo na indústria, permitindo maior flexibilidade e inovação.

Um breve histórico das ferrovias americanas

Para entendermos a importância desse retorno, devemos entender a história das ferrovias americanas, como e porque a iniciativa privada deixou o transporte ferroviário de passageiros nos EUA. No início do século XX, as ferrovias privadas dominavam o transporte de longa distância na América.

No entanto, com o advento dos massivos investimentos nas auto estradas americanas, o crescimento da indústria do automóvel e o avanço da aviação civil, as ferrovias privadas americanas foram gradualmente perdendo seus passageiros, sem a consequente e correspondente redução dos custos de oferta, devido a imposições regulatórias da extinta Comissão de Comércio Interestadual (ICC).

Na década de 1970, muitas dessas ferrovias estavam à beira da falência devido aos pesados déficits provocados pelas restrições regulatórias. Como uma medida de mitigação desses déficits e com o fim de não excluir os cidadão da oferta desses serviços de transportes, carregados de altas externalidades positivas para a população, o governo americano resolveu criar a Amtrak.

A Amtrak seria, portanto, uma empresa pública dedicada a fornecer o transporte de passageiros de média e longa distância, antes praticado pelas ferrovias privadas, que passariam a se concentrar exclusivamente no transporte de cargas.

A dispensa da prestação do transporte de passageiros não foi medida suficiente para equilibrar as contas das centenas de ferrovias privadas americanas. No início dos anos 1980, foi editado uma nova reforma regulatória que desburocratizou quase que totalmente o transporte ferroviário de cargas nos EUA. Por essa reforma foi estancado o abandono de ramais, aumentou-se a oferta de serviços, houve reduções nos preços dos fretes e os déficits foram convertidos em lucros para estradas de ferro.

A mudança de paradigma regulatório foi tão significativa que no início dos anos 1990 a ICC foi abolida. Muitas das funções da ICC foram transferidas para a recém-criada STB (Surface Transportation Board), particularmente em relação à regulação econômica da indústria ferroviária de cargas.

Com o tempo, o êxito da economia americana, o aumento do poder de compra das famílias, o incremento do número de veículos automotivos em circulação geraram uma nova oportunidade: o retorno das ferrovias ocupando o espaço dedicado aos veículos de passageiros

Fatores econômicos têm torando o retorno das ferrovias privadas uma opção viável. Com a crescente congestão nas estradas e aeroportos, as ferrovias oferecem uma alternativa eficiente e econômica, além de mais sustentável.

No vídeo seguinte da CNBC, podemos ver como nesse processo histórico as ferrovias privadas americanas se especializaram no transporte de cargas.

A volta da iniciativa privada às ferrovias: a confluência certa, na hora exata

Após quase um século sem novas construções de ferrovias greenfield pelo setor privado, novos projetos ferroviários de passageiros começam a surgir na América. Este renascimento é o resultado de uma confluência de fatores econômicos, tecnológicos, ambientais e legais.

O ressurgimento do transporte ferroviário de passageiros pode ser atribuído primeiramente a uma série de fatores econômicos. Em muitos casos, devido aos constantes engarrafamentos nas estradas e vias urbanas, torna-se mais econômico e rápido para os passageiros viajarem de trem entre cidades do que dirigir, seja de carro, táxi, ônibus ou veículos de aplicativo, especialmente quando se considera o valor total do tempo gasto em viagem.

Voar às vezes não é sequer uma opção porque as cidades são próximas demais, não tendo linhas aéreas ou estas, quando existem, sendo caras demais, se comparadas ao uso dos trilhos. Os americanos cunharam a expressão: “too long to drive, too short to fly” (muito distante para dirigir, perto demais para voar), para definirem essa primeira condição.

Além disso, é preciso haver demanda. Não basta as cidades estarem na distância certa, é preciso haver um fluxo robusto de passageiros com desejos de viagem, seja por turismo ou para a vida cotidiana, grande o suficiente para cobrir os custos de implantação dos serviços ferroviários.

Um terceiro aspecto é o avanço tecnológico, que tem permitido o desenvolvimento de trens mais rápidos e confortáveis, tornando a viagem de trem uma experiência mais agradável. Não estamos falando de trens maria fumaça, ou composições que não passam de 50km/h. Esses projetos costumam usar trens elétricos com velocidades máximas superiores a 200km/h.

Ademais, a crescente consciência ambiental também tem desempenhado um papel, com as ferrovias emergindo como uma opção atraente devido à sua maior eficiência energética em comparação com os carros e aviões. Isso tem permitido melhores condições de financiamento e flexibilizações regulatórias, que atraem investidores.

Por fim, mas não menos importante, o governo federal americano lançou um robusto pacote de incentivos econômicos e subsídios às empresas privadas que conseguirem se qualificar na proposição de novos projetos.

O que podemos aprender do caso Brightline?

A Brightline é a primeira ferrovia privada a construir uma linha de passageiros nos EUA há quase um século. Formada a partir do conglomerado que já possuía a linha de trem de cargas no leste da Flórida, a companhia aproveitou-se de sua posição estratégica para duplicar a linha de trem entre Miami e Cocoa Beach e de lá construir uma linha singela inteiramente nova até o aeroporto de Orlando.

Embora não seja tecnicamente considerado um trem de alta velocidade, já que sua velocidade máxima é de “apenas” 200km/h, a introdução do novo serviço ferroviário reduziu o tempo de viagem de 5 horas para 3,5 horas. 

Ao custo de mais de U$ 6 bilhões de dólares, a maior parte da linha foi construída dentro da faixa de domínio da antiga ferrovia de cargas. E o seguimento seguinte foi construído às margens de uma rodovia já implantada, o que certamente reduziu bastante os custos de implantação.

O projeto foi executado em fases, sendo a primeira aberta ao público em janeiro de 2018, conectando Miami a Fort Lauderdale e West Palm Beach. A construção do trecho final começou em 2019 e foi aberta ao público em 2023, com um pequeno atraso devido à pandemia de covid-19.

A Brightline não apenas construiu uma nova linha de trem, mas também incorporou várias inovações tecnológicas para melhorar a experiência do passageiro. Por exemplo, os trens são equipados com Wi-Fi de alta velocidade e tomadas de energia em cada assento, permitindo que os passageiros trabalhem ou se divirtam durante a viagem.

Parte do êxito do negócio reside no aproveitamento dos imóveis lindeiros à linha, para a construção de imóveis residenciais, de escritórios, comerciais e até mesmo edifícios de garagens. Além disso, a lucratividade do negócio também pode ser associada aos menores custos de implantação da linha em um território plano, sem imbróglios jurídicos com desapropriações de faixas de domínio, uma receita segura devido a alta demanda turística na região e aos menores custos de financiamento através de PAB (Private Activity Bond).

O PAB ou título de atividade privada são títulos emitidos por ou em nome de governos locais ou estaduais para canalizar recursos para projetos ou atividades privadas de utilidade pública. Por meio do mecanismo de PAB a Brightline conseguiu taxas de juros isentas de impostos, com custos de capital mais baixos que mecanismos tradicionais de financiamento corporativo.

Finalmente, a sustentabilidade é um aspecto crucial do sucesso da Brightline. Ao optar por trens movidos a biodiesel, a empresa não apenas reduz sua pegada de carbono, mas também demonstra um compromisso com a sustentabilidade ambiental. 

Conclusão

O ressurgimento do transporte ferroviário de passageiros nos EUA é um sinal positivo para o futuro do transporte sustentável e uma lição importante que pode ser aplicada pelo Brasil, com o advento da Lei das Ferrovias, que já permitiu a manifestação do interesse privado ao menos em 3 novos corredores ferroviários de passageiros por autorização aqui no Brasil.

A implementação desses novos corredores ferroviários, impulsionada por investimentos privados, além de refletir a confiança do mercado no retorno dos investimentos baseados em estratégias coerentes de captura de demandas de passageiros, também sinaliza para um aperfeiçoamento consistente das relações institucionais entre o setor público e o setor privado.

No entanto, como em qualquer grande empreendimento, existem riscos e desafios associados. Como, por exemplo, uma boa relacionamentos institucionais entre as diferentes instancias estatais e os investidores privados, que permitam boa coordenação entre os demais aspectos de urbanismo, sustentabilidade e mobilidade das cidades servidas por esses projetos. 

Esse renascimento americano é uma excelente oportunidade para as entidades públicas brasileiras, principalmente no nosso mercado de financiamento de projetos de infraestrutura, muito dependente do modelo de corporate finance, em prejuízo do project finance, se adaptarem ao desafiador novo cenário.

Além das notórias dificuldades na obtenção de licenciamentos ambientais. Os novos investidores passarão por um longo processo de adaptação de mindsets, para que nós brasileiros, possamos acreditar que o transporte público pode ser privado.

Com o tempo, esperamos ver mais desenvolvimentos nesta área e estamos ansiosos para ver como esses projetos irão transformar o panorama do transporte nos EUA e no Brasil, trazendo benefícios tanto para os usuários quanto para os investidores.