Transporte Público pode ser Privado?

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por Marcos Kleber Ribeiro Felix

Transporte Público pode ser Privado?

Este artigo explora a possibilidade de operação do transporte ferroviário, tanto de cargas quanto de passageiros, sob um regime de direito privado, desafiando a noção tradicional brasileira – anterior à Lei das Ferrovias, de 2021 -, de que o transporte de massa deve ser um serviço público. É correto acreditar que o mercado privado não é eficiente na provisão de bens públicos, todavia, não é correto acreditar que o Estado é o único  apto para fornecer transporte público em todos os casos. Embora a premissa seja verdadeira, ela não deve levar à conclusão de que apenas o Estado deve prover o transporte público. Ao oferecer transporte, o Estado, em tese, está buscando maximizar as externalidades positivas da atividade na economia, ao mesmo tempo que tenta garantir a inclusão social daqueles que não possuem meios próprios de locomoção3. Quando o mercado oferece transporte, ele está apenas buscando maximizar seus resultados econômicas. E as duas opções são válidas e podem gerar bons resultados para os mais pobres.

Compreendendo o Transporte Público: Diferenciação entre Bens Públicos e Infraestruturas de Transporte

Primeiramente, é importante reconhecer que o transporte público não é necessariamente um bem público. Um bem público é aquele que deve ser fornecido na mesma quantidade para todos os consumidores envolvidos. Uma vez que um bem público é ofertado, não é possível restringir o consumo, nem consumi-lo em diferentes quantidades. Exemplos clássicos de bens públicos são o meio ambiente e a defesa nacional. Não é possível a um determinado cidadão obter mais ou menos defesa nacional. Independentemente de sua propensão a pagar mais ou menos tributos para evitar uma invasão estrangeira, todo cidadão recebe a mesma quantidade de defesa nacional. Da mesma forma, o ar puro, o mar limpo são bens que não podem ser consumidos de forma individualizada, independentemente da utilidade que os consumidores precificam esses bens.

Algumas infraestruturas de transportes como calçadas, ruas, estradas e rodovias podem ter comportamento de bens públicos. Entretanto, há exceções. Quando a demanda é muito maior que a oferta ou quando os sistemas são fechados desaparece o comportamento de bens públicos em sistemas de transportes. Estradas congestionadas e sistemas metroferroviários, em geral, não têm comportamento de bens públicos. Essas infraestruturas são aptas a serem providas pelo mercado privado, pois têm efeito carona negligenciável. Aliás, a oferta de transporte aberto ao público por empresas privadas é um fenômeno econômico antigo que vem se tornando cada vez mais popular nos países desenvolvidos.

Evolução dos Transportes Terrestres: Da Revolução das Estradas Pavimentadas na Inglaterra ao Sucesso das Ferrovias Privadas

A Inglaterra foi a nação precursora dos investimentos privados na provisão de infraestrutura de transportes terrestres. Em 1695, o mercado inglês obteve segurança jurídica para investir na construção e manutenção de estradas pavimentadas, por meio de Acts of Parliament, que autorizavam a cobrança privada de tarifas sobre o tráfego ao longo de certa extensão das estradas. No século XVIII, os Turnpike Acts, do Parlamento inglês, revolucionaram a provisão de infraestrutura rodoviária. Naquele século, cresceu a malha e reduziram-se, substancialmente, os tempos de viagem, pois o interesse econômico era predominante na definição dos traçados das novas estradas pavimentadas.

A partir dos anos 1820, com o desenvolvimento da ferrovia e da locomotiva a vapor, diversas firmas privadas prosperaram na provisão de infraestruturas ferroviárias de transportes, tanto no transporte de cargas – que até hoje vigora nos Estados Unidos da América –, quanto no transporte de passageiros. Em 1933, seis firmas privadas distintas operavam em Londres no que hoje é conhecido como Underground ou Tube.

Naquela época – e ainda hoje – o transporte ferroviário privado se viabilizava em função de dois motivos: ser a alternativa mais econômica para o usuário e/ou ser a alternativa mais rentável para o investidor.

O primeiro motivo vem do fato de o usuário, em geral, querer pagar o preço mais barato pelo transporte. Em São Paulo, o transporte de café por ferrovias privadas poderia ser seis vezes mais barato que o transporte convencional por estradas carroçáveis no fim do século XIX. Nos EUA, a ausência de barreiras a entradas e vantajosidade da ferrovia em relação as alternativas fomentaram a construção de uma rede de mais de 400 mil km de trilhos. A rede ferroviária américa reduziu-se ao longo dos últimos cem anos, paulatinamente, à medida que o preço do frete ferroviário foi se tornando mais caro que sua alternativa: o aquaviário a partir de 1914, com a abertura do canal do Panamá; o rodoviário a partir dos anos 1930, com a construção de rodovias pavimentadas pelo poder público; e o aéreo a partir dos anos 1950, com a entrada da aviação civil comercial. Mesmo assim, ainda hoje, as firmas ferroviárias privadas americanas que exploram mais de 200 mil km de trilhos sobrevivem sem subsídios diretos no competitivo mercado de transporte americano porque têm o preço mais barato na longa distância no interior do país.

Integração Socioeconômica e Expansão do Transporte: A Espiral do Crescimento Orgânico e Casos Globais

O segundo motivo tem relação com a primeira lição de Manheim (1979) em seu clássico Fundamentals of Transportation Systems Analysis. “O sistema de transporte de uma região interage com o sistema socioeconômico alterando a demanda de origens, destinos, rotas, volumes de bens e de pessoas transportadas no sistema”, criando uma espiral de crescimento orgânico, em que a introdução da oferta de infraestrutura de transporte aumenta a demanda das atividades econômicas por mais infraestruturas, em um ciclo sucessivo de interação.

Sempre que a firma de transporte pode se aproveitar dos ganhos econômicos dessa interação acumulando receitas não apenas de tarifas de transportes, mas de atividades socioeconômicas afetadas pelo transporte que provê, então, são criados fortes incentivos para que o sistema de transporte se expanda naturalmente. Este foi exatamente o caso das ferrovias americanas e inglesas que promoveram os primeiros metrôs em Nova Iorque e em Londres, no século XIX, e atualmente percebemos nas empresas chinesas no século XXI. As firmas agiram nesses territórios como firmas de desenvolvimento urbanístico, comprando terras a preços mais baixos na periferia, provendo infraestruturas de transportes a partir do centro, e depois revendendo e alugando imóveis a preços competitivos, suficientes para gerar lucros, e, ainda assim, a preços menores que os praticados nos centros da cidade. Um negócio em que todos ganham.

Esse expediente criado pelos empresários americanos e ingleses em meados do século XIX, vem sendo praticado na Ásia desde meados do século XX. No Japão, somente no entorno de Tóquio cerca de 50 firmas privadas construíram e operam trens de passageiros, além de, também, hotéis, residenciais, escritórios e shopping centers. Na Ásia, as empresas metroferroviárias arrecadam aproximadamente entre 30% e 60% de seu faturamento das receitas advindas das atividades socioeconômicas afetadas pelo transporte que oferecem.

Aliás, essa prática vem sendo retomada nos EUA, inicialmente na Flórida, onde a Florida East Coast Industries, um grupo privado de exploração imobiliária construiu e está operando, desde maio de 2018, por meio de sua subsidiária Brightline, um serviço de trem de passageiros de média velocidade. Atualmente em operação entre Miami e Orlando, com paradas em Aventura, Fort Lauderdale, Boca Raton e West Palm Beach, com tickets variando entre U$ 49 (quarenta e nove dólares americanos) a U$149 (cento e trinta e nove dólares americanos) por pessoa, por uma viagem de cerca de 378 km em um tempo de 3h e 30min. Novamente, o negócio se viabiliza para o usuário pelo custo de oportunidade, mais conveniente que as alternativas, e, para o investidor, pelos ganhos com receitas assessórias vinculadas ao negócio de transportes, como os imóveis de escritório, lojas e residenciais sobre a estação central em Miami e no entorno nas demais estações até Orlando.

O caso da Brightline é um exemplo concreto e atual de que o transporte público pode ser integralmente idealizado, financiado, construído e operado pelo mercado privado, sem a necessidade de subsídios, burocracia, ou despesas do contribuinte. Ao custo de mais de U$ 6 bilhões, esse projeto não foi planejado em Washington-DC, nem licitado pela agência reguladora, nem teve o preço das tarifas fixado pelo poder público. Foi integralmente concebido com o propósito de ser lucrativo, aproveitando-se de uma condição particular de densidade urbana, interesses de viagens dos consumidores, aproveitamento de linhas subutilizadas e faixas de domínio rodoviárias. A solução foi tão bem sucedida que está sendo planejada pela Brightline uma nova versão do modelo entre a Califórnia e Nevada, no que é chamado de Brightline West. Ali, no entanto, é importante notar que a Brightline West recebeu um subsídio de U$ 3 bilhões de dólares do Governo Federal dos Estados Unidos.

Se as barreiras jurídicas a entradas e saídas no mercado de transportes são baixas, firmas privadas terão interesse em investir por diferentes abordagens, desde aquelas com baixa criação de infraestruturas, como, por exemplo, o Uber, 99, Cabify, até aquelas com intensiva criação de infraestruturas e custos afundados, como Brightline, Keio, MTR.

Todas essas firmas atuam onde a demanda, a rentabilidade e os riscos são compatíveis com seus modelos de negócio. A diferença entre elas está nos efeitos socioeconômicos que provocam nas cidades. Enquanto as primeiras contribuem para a diminuição da demanda pelo transporte coletivo e de forma indireta fomentam o espraiamento do tecido urbano, as últimas contribuem para o aumento da demanda pelo transporte coletivo e de forma direta fomentam a densificação do tecido urbano, pois, são remuneradas não apenas pelo preço da viagem, mas pelas receitas assessórias do maior fluxo de passageiros que transitam a pé pelo entorno das estações, frequentando suas lojas, escritórios e residenciais.

Transporte Privado e Desenvolvimento Socioeconômico: Benefícios, Desafios e Perspectivas Futuras

Com a introdução das firmas metroferroviárias privadas no mercado, o Estado ganha de três maneiras: arrecada mais tributos, deixa de gastar com a provisão direta dos serviços, e, além disso, também economiza na provisão otimizada de bens públicos, como vias, escolas, delegacias, prontos-socorros etc. que podem ser localizados em posições mais eficientes do tecido urbano.

Toda essa economia pública poderá ser aplicada em transporte de cunho social, aquele em que o mercado não tem interesse de prover sozinho por ser antieconômico, mas que o Estado tem dever de garantir aos mais pobres. Novamente, todos os cidadãos ganham.

A discussão sobre o modelo de ferrovias privadas autorizadas é necessária não apenas no transporte de passageiros, mas também no mercado de cargas, em complementação ao atual modelo brasileiro de concessões. Nos Estados Unidos o modelo de ferrovias autorizadas tem sido bastante exitoso. Lá, por exemplo, existem 546 ferrovias locais (short lines) administrando uma rede de 52.800 km, i.e., com extensão média de 96,7 km por ferrovia. Somente essas ferrovias locais têm uma extensão superior a toda malha ferroviária brasileira de 29.075 km de ferrovias em concessão.

Firmas privadas sempre realizaram transporte aberto ao público. Entretanto, no Brasil, o transporte mormente o ferroviário é de forma equivocada compreendido pela legislação ordinária como um serviço público, outorgado apenas pelo Estado, após morosos processos de licitação, que às vezes sequer ocorrem, às vezes resultam desertos, como foi o já esquecido trem-bala entre o Rio de Janeiro e Campinas.

As evidências da história, no entanto, ensinam que não existe razão econômica suficiente a recomendar que todos os ovos do transporte sejam colocados exclusivamente na cesta do Estado, muito pelo contrário. Quanto mais aberto o País e as cidades estiverem para o livre interesse do mercado em construir por sua conta e risco infraestruturas de transportes, melhor para a sociedade, para os contribuintes, e, principalmente, para os mais pobres.

Notas do Autor:

Este artigo é uma atualização de “Transporte Público pode ser Transporte Privado?”, que publiquei em junho de 2018, para defender as ideias contidas no PLS nº 261, de 2018, recentemente apresentado àquela época. Aqui o termo transporte público é usado como uma provocação ao leitor, pois não quer dizer de titularidade pública, mas sim, aberto ao público. Quando foi originalmente publicado este artigo, o PLS nº 261, ainda não havia sido sequer discutido na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. A pretensão era tirar o leitor da zona de conforto, acostumado a pensar que todo o transporte de massa é um serviço público, para que fosse convencido a considerar a viabilidade factual de que o transporte ferroviário, tanto o de cargas quanto o de passageiro poderia ser explorado como uma atividade econômica, em termos de mercado, em regime de direito privado.

Em economia, um bem é dito público quando possui duas características principais:

Não rivalidade no consumo: Isso significa que o consumo desse bem por uma pessoa não reduz a quantidade disponível para outras pessoas. Em outras palavras, o uso de um bem público por uma pessoa não impede que outras também o utilizem.

Não exclusão: Isso significa que é impossível ou extremamente difícil excluir as pessoas do uso desse bem. Uma vez que o bem público é fornecido, é praticamente impossível impedir que as pessoas o utilizem, independentemente de terem contribuído financeiramente para sua produção ou não.

Segundo, Varian (2006), essas características tornam os bens públicos diferentes de outros tipos de bens, como bens privados ou bens comuns. Os bens privados são rivalizantes no consumo e exclusíveis, enquanto os bens comuns são rivalizantes no consumo, mas não exclusíveis. Devido à natureza desses bens, eles muitas vezes enfrentam desafios na provisão eficiente pelo mercado, e muitas vezes requerem intervenção do governo para garantir seu fornecimento adequado. Ferrovias têm uma natureza dual em função de sua demanda e finalidade, haverá ferrovias somente conseguiram existir como bens públicos, outras facilmente poderão existir como bens privados. Até o surgimento do PLS nº 261, de 2018, o pensamento predominante entre os atores interessados brasileiros era tratar a ferrovia sempre como um bem ou um serviço público, o que pela experiência internacional era uma abordagem limitada e equivocada.

Justificação da PEC nº 74, de 2013 (Emenda Constitucional nº90, de 2015).

Nota de Atualização. Os preços apresentados no artigo foram obtidos no site oficial da Brightline para abril de 2024.

Nota de Revisão. Os trens da Brightline, operados por locomotivas diesel-elétricas Siemens-Charger, alcançam uma velocidade máxima de 200 km/h. A velocidade média é de aproximadamente 120 km/h. Segundo a UIC, para ser considerado de alta velocidade a o trem deveria se deslocar a uma velocidade média mínima de 200km/h, quando se aproveitasse de linhas pré-existentes ou 250km/h em linhas novas.

Nota de Atualização. Na vigência da Medida Provisória nº 1.065, de 2021, e da Lei das Ferrovias (Lei nº 14.273, de 2021), 108 pedidos de investimento em infraestruturas ferroviárias privadas (pátios e linhas férreas) foram solicitados à União e até dezembro de 2023, 46 contratos de autorização ferroviária foram firmados com o mercado brasileiro.

Nota de Atualização. Evidências empíricas observáveis nos resultados do novo marco legal ferroviário trazido com as autorizações ferroviárias apontam justamente este caminho. Dos 108 pedidos de autorizações apenas 1 foi formulado visando prioritariamente o transporte de passageiros, no caso uma linha de alta velocidade entre Rio de Janeiro e São Paulo. Esta evidência, per si, é sinalizadora da necessidade do Estado Brasileiro priorizar seus escassos recursos disponíveis para o desenvolvimento da mobilidade ferroviária, uma vez que até o momento, é aqui onde reside a maior dificuldade para o investimento privado, e, além disso, é o campo que proporciona maiores benefícios sociais e econômicos para um maior número de pessoas.

Nota de Revisão. O artigo original possuia informações sobre hyperloop. Hyperloop é uma modalidade conceitual de transporte em que pessoas ou cargas são transportadas em um tubo de baixa pressão impulsionadas por um trilho eletromagnético. Devido à redução do atrito com o ar rarefeito dentro do tubo o veículo poderia, em teoria, alcançar velocidades de cruzeiro superiores a 1.000km/h, tornando-se mais competitivo que o transporte aéreo. Atualmente diversas firmas privadas competem internacionalmente no desenvolvimento dessa nova tecnologia já tendo sido autorizadas a prospectar soluções em Chicago, Pittsburg , Dubai, entre outras.

Referências:

BLANNING, T. C.(2007) The pursuit of glory: Europe, 1648-1815. Penguin.

Federal Railroad Administration (2014) Summary of Class II and Class III Railroad Capital Needs and Funding Sources.

FELIX, M. K. R. (2018) Exploração de infraestrutura ferroviária: lições de extremos para o Brasil. Publicação T.DM – 001/2018, Departamento de Engenharia Civil e Ambiental, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 162p.

FELIX, M. K. R. (2018). Transporte público pode ser transporte privado?. Brasil, Economia e Governo.

MANHEIM, M. L. (1979). Fundamentals of Transportation Systems Analysis. Mit Press Series in Transportation Studies.

SILVA, C. P. da (1904). Política e Legislação de Estradas de Ferro. Volume I. São Paulo. Typ. Laemmert & Comp.

SUZUKI,H., MURAKAMI, J., HONG, Y. H., & TAMAYOSE, B. (2015) Financing transit–oriented development with land values: Adapting land value capture in developing countries. World Bank Publications.

VARIAN, H. (2006) Microeconomia: conceitos básicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006 – 6ª reimpressão.