Por que os automóveis perderão espaço para as ferrovias?

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por

Marcos Kleber R Felix

Os automóveis estão entre nós há cerca de 140 anos, quando alguns visionários como Karl Benz e Gottlieb Daimler tiveram a brilhante ideia de substituir os cavalos de uma carroça por um motor a combustão. Pois bem, essa tecnologia, de grande êxito, em algum momento do nosso futuro será vítima de um outro grande sucesso ainda maior: o avanço da revolução industrial e tecnológica.

Neste texto, farei uma previsão difícil, tal qual Thomas Malthus que nos idos dos anos 1800 previu que em algum momento do futuro, a humanidade passaria por grande crise, quando a demanda por alimentos de uma população que crescia a taxas cada vez maiores, não pudesse mais ser atendida pela oferta de escassos recursos agrícolas de uma Terra finita.

No futuro, a combinação de uma população com um poder de compra cada vez mais alto com uma demanda ainda mais intensa por usos mais nobres da superfície da Terra, exigirá que as cidades sejam mais densas e compactas, por meio de um urbanismo totalmente dedicado ao pedestre, que preferirá viajar longas distâncias de trens e metrôs e não por carros.

Malthus ficou notoriamente conhecido pela sua previsão inatingida. Passados mais de 200 anos, a população da Terra saltou de 1 bilhão de almas vivas, para mais de 8 bilhões de bocas ávidas por alimentos. E nem sequer estamos pertos da catástrofe. Não somente somos mais em número, como também consumimos muito mais calorias que há 200 anos, graças ao capitalismo e a otimização dos meios de produção industrial.

A altura média da população mundial aumentou significativamente nos últimos 200 anos. No final do século XVIII e início do século XIX, a altura média dos homens era de cerca de 170 cm. Hoje, a altura média da população masculina em muitos países desenvolvidos é de cerca de 177 cm, devido as melhores condições de nutrição e saúde.

Minha previsão não é pessimista como a de Malthus, o futuro sem carros será melhor do que o presente das carroças metálicas autopropelidas por eletricidade ou combustíveis fósseis, em vez da distopia da crise alimentar, estaremos mais propensos a uma utopia de cidades sem automóveis. A escassez de espaços nas superfícies das cidades, que abrigarão uma população cada vez mais rica, levará a substituição dos automóveis pelas ferrovias.

O efeito do capitalismo e da escassez de território no futuro do urbanismo

No caso dos alimentos, somente sobrevivemos à previsão de Malthus porque a produtividade do agro foi muito maior que as taxas de crescimento da população. No caso dos automóveis, a renda média das famílias e a diminuição global da pobreza fará com que em algum momento do futuro todos os cidadãos do Planeta sejam economicamente aptos a possuírem um automóvel.

Só que, muito antes desse dia chegar, não haverá espaço suficiente nas cidades para tantos carros circularem vazios ou estacionarem nas portas dos escritórios, lojas e apartamentos, a menos que até lá se invente o carro voador dos Jetsons, o que decretará de vez a extinção do automóvel terrestre como conhecemos.

Para termos um exemplo, cito a população do Brasil, que hoje é de cerca de 217 milhões de habitantes. De acordo com os dados mais recentes, mais de 149.1 milhões de pessoas, ou seja, cerca de 69.9% da população, estão na faixa etária de 15 a 64 anos. Nossa frota de automóveis de passeio é de aproximadamente 38.3 milhões de veículos. Isso significa que devemos ter pelo menos 100 milhões de cidadãos com idade para dirigir um veículo, mas sem condições econômicas suficientes para tanto.

Agora, imagine o trânsito nas cidades brasileiras se todos os cidadãos tivessem condições econômicas suficientes para dirigir carros. Como as cidades brasileiras iriam lidar com 4 vezes mais automóveis do que temos hoje? No futuro, seremos menos pobres e as cidades mais escassas em áreas disponíveis para automóveis.

Vamos esquecer o Brasil por um instante e refletir sobre dois modelos de desenvolvimento. O primeiro, dos EUA, foi caracterizado pela indústria automobilística, que promoveu o urbanismo disperso e pouco denso para acomodar cada vez mais veículos. O segundo modelo, adotado na Europa, concentrou-se em cidades densamente povoadas, servidas por sistemas de trens e metrôs eficientes. Agora, qual caminho a humanidade seguirá?

O urbanismo europeu da felicidade do pedestre

Um exemplo notável é Paris, que está expandindo sua rede metroferroviária. Até 2030, serão construídos mais 200 km de novas linhas de metrô, conectando os dois aeroportos da cidade, Charles de Gaulle e Orly, às regiões suburbanas por meio do Grand Paris Express. Enquanto isso, Londres acaba de inaugurar 140 km da nova linha Elizabeth, que liga a cidade de leste a oeste, e está se preparando para outra super linha de trens urbanos de norte a sul. Além disso, várias outras cidades europeias estão construindo novas linhas de metrô para conectar aeroportos, subúrbios e novos distritos em suas densas redes metroferroviárias.

Na Europa, mesmo os carros elétricos são considerados inadequados. Eles prejudicam a saúde das cidades, não apenas devido à poluição direta, mas também porque ocupam espaço valioso que poderia ser melhor utilizado para outros fins. No futuro, mais pessoas terão condições econômicas para possuir um carro, mas a demanda por espaços sustentáveis para lazer, moradia, trabalho e produção de alimentos será muito maior do que a necessidade de circulação de automóveis.

O automóvel está entre nós há apenas 140 anos. Antes disso ou andávamos ou usávamos carroças puxadas por tração animal ou os próprios animais, como meio de locomoção, com todos os inconvenientes dessa solução, entre eles o mau cheiro. Não é de espantar que a própria invenção do metrô como solução de mobilidade esteja relacionada a aversão da população de Londres em viver em uma cidade repleta de fezes equinas.

Essa mudança recente na nossa forma de vida merece reflexão. Não faz muito tempo, a vida era assim: meu avô, por exemplo, construía carros de boi. A primeira fábrica de automóveis só chegou ao Brasil nos anos 1919. O automóvel era um bem de luxo, que vem dia a dia se popularizando. E em futuro próximo será tão popular que não será possível utilizá-lo.

Vale lembrar que o ser humano é, por natureza, um pedestre.  O gosto pela caminhada, especialmente a curta distância, está em nosso DNA comportamental. Passamos milhares de anos caminhando para sobreviver, quem não caminhava já ficou pelo caminho da evolução. Entretanto, a escassez de espaço físico nos levará, paradoxalmente, a caminhadas cada vez mais longas. Preferimos o que pode ser facilmente acessado a pé ao invés de uma jornada que nos leve a horas de engarrafamento. Já notou que cidades pequenas ou bem servidas por metrôs são opções preferíveis para turismo?

Por causa do urbanismo da felicidade – se existe uma arquitetura da felicidade, também deve existir um urbanismo da felicidade – as populações mais ricas e desenvolvidas preferirão cidades densamente povoadas com edificações de usos mistos, onde tudo pode ser feito a pé a poucos passos de casa. Se houver necessidade de ir mais longe, que o deslocamento seja feito por metrô ou de trem. Descer a um túnel subterrâneo e pegar um trem elétrico para o destino, como em Paris, Berlim, Londres e Copenhague, mas com uma oferta muito maior do que temos hoje.

A reversão do urbanismo americano

No futuro, o problema não será a falta de dinheiro, mas sim a falta de espaço. Será mais sensato construir túneis para trens do que para carros elétricos, contrariando a proposta da Boring Company de Elon Musk.

A superfície será dos pedestres, no máximo dos ciclistas, e as vias urbanas serão principalmente ocupadas pelo transporte de mercadorias. O automóvel não será completamente extinto, mas será muito restrito às necessidades rurais, para as quais a demanda de viagens de passageiros por trens não seja suficiente, mesmo no futuro rico, tecnológico e desenvolvido.

E os EUA? O que acontecerá com o subúrbio americano, produto das grandes montadoras de automóveis movidos a combustíveis fósseis? O capitalismo dos produtores de petróleo e veículos americanos moldou o urbanismo americano como o conhecemos. Mas então, o que muda?

A China e os carros elétricos terão um efeito colateral substancial nos EUA para as montadoras de automóveis e distribuidoras de combustíveis que lideraram o lobby do subúrbio americano. Como os planejadores americanos reagirão quando todo o dinheiro estiver indo para Pequim? Penso que a resposta a esta questão virá na densificação, já que não será mais lucrativo, não para o bolso americano, fazer o cidadão rodar por quilômetros e quilômetros sem fim.

O problema do tempo de deslocamento nas rodovias e da falta de espaço para morar, plantar, trabalhar e se divertir também existirá nos EUA, como já existe na Europa. A questão histórica do lobby da indústria americana será a variável em transição, com a diminuição do poder econômico das montadoras de automóveis à combustão e produtoras de petróleo.

O futuro está nos trilhos e não nos automóveis

Minha tese é que o mundo inteiro se europeizará com o passar dos anos. Já vemos isso acontecer na Austrália, no Japão e na própria China. É apenas uma questão de tempo para acontecer na África, no Oriente Médio e nas Américas, sendo os EUA o último a se europeizar, não por falta de dinheiro, mas por efeito da inércia em ter seguido o caminho errado.

Mesmo que aconteça por último entre os mais ricos, essa reflexão já está acontecendo na América. Isso já pode ser notado com os planos de demolição de autoestradas em centros urbanos e o maior aparecimento de projetos de ferrovias em grandes cidades, como os novos projetos de trens intercidades vistos no Texas, Nevada, Califórnia e Flórida.

O fim do automóvel como o conhecemos não acontecerá nos próximos 100 anos, ainda não será tempo suficiente para enriquecer todo o planeta, mas vai acontecer. Nesse processo de extinção do automóvel como o conhecemos, ele será mais inteligente, automatizado e cada vez menor. Porque o espaço físico é a variável finita mais valiosa.

Não há espaço para carros para todos, porque todos serão muitos e o espaço das cidades será cada vez mais disputado, porque todos exigirão muito mais florestas e fazendas do que temos hoje. As cidades terão que ocupar o mínimo de espaço possível na superfície da Terra. Então teremos que viver mais em prédios do que em casas e teremos que andar muito mais a pé e de trem do que de carro, por mais inteligentes, econômicos e elétricos que sejam os pequenos automóveis do futuro, ainda que voadores.

Notas:

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Referências:

Botton, A. de. (2007). A arquitetura da felicidade. Editora Rocco.

Flink, J. J. (1990). The Automobile Age. MIT Press

Jacobs, J. (1992). The Death and Life of Great American Cities. Vintage Books.

Manjoo, F. (2020). I’ve Seen a Future Without Cars, and It’s Amazing. The New York Times.

McDonough, W., & Braungart, M. (2002). Cradle to Cradle: Remaking the Way We Make Things. North Point Press.

Mitchell, W. J., Borroni-Bird, C. E., & Burns, L. D. (2015). Reinventing the Automobile: Personal Urban Mobility for the 21st Century. MIT Press.

Newman, P., & Kenworthy, J. (2015). The End of Automobile Dependence: How Cities are Moving Beyond Car-Based Planning. Island Press.

Piketty, T. (2017). Capital in the Twenty-First Century. Belknap Press