Trilhos porta a porta: Rumo à Eldorado

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por Marcos Kleber R Felix

E se o modo ferroviário brasileiro transportasse mais de 30% dos bens em circulação no país, em vez dos atuais 15%? E se mais de um terço das cargas transportadas pelos trens no Brasil fossem cargas gerais, e não apenas 8%, como é atualmente? Como seria a economia brasileira se os trilhos do país pudessem desempenhar um papel protagonista na logística nacional? Será que teríamos capacidade para implementar trilhos porta a porta?

Este texto procura explorar a possibilidade de fomento de uma rede ferroviária porta a porta na logística brasileira, em decorrência da Lei nº 14.273, de 2021, o que poderia revolucionar a logística nacional, reduzindo custos, aumentando a eficiência e promovendo a sustentabilidade. No contexto ferroviário brasileiro, isso significaria uma transformação necessária e urgente na forma como as cargas são transportadas, potencialmente alavancando a economia e a competitividade do país.

Esse texto também aborda as iniciativas de implantação de novos caminhos de ferro, por duas gigantes brasileiras da logística e da produção de celulose, respectivamente, Rumo e Eldorado.

Escassez da Infraestrutura Ferroviária no Brasil

Porta a porta é um conceito de logística atribuído ao transporte rodoviário. Significa que produtos podem ser transportados da origem (fábricas, minas ou fazendas) diretamente ao destino (consumidor final) sem a necessidade de transferências entre veículos ou armazéns intermediárias. O mais próximo que temos disso nas ferrovias brasileiras é o conceito de mina-ferrovia-porto, onde o minério de ferro é transportado diretamente das minas do quadrilátero ferrífero, nas Minas Gerais, ou de Carajás, no Pará, por ferrovias, até terminais portuários, tudo sob a gestão de uma única empresa.

Como sabemos, a logística no Brasil depende fortemente do transporte por caminhões. O que muitas vezes não percebemos é que esse transporte ocorre em uma malha rodoviária escassa. Segundo a Confederação Nacional dos Transportes, em 2019, a malha de estradas pavimentadas no Brasil era de aproximadamente 212 mil km. Assim, a densidade rodoviária do Brasil, em 2019, era de apenas 25 m/km2. Esse valor é 17 vezes inferior ao dos EUA, que possuem uma rede de estradas pavimentadas de mais de 4,3 milhões de quilômetros. Obviamente, mais estradas significam mais origens e destinos, menores tempos de viagem, maiores possibilidades de arranjos logísticos, menores custos e maior produtividade.

No modo ferroviário, esse comparativo é ainda pior para o Brasil. Segundo o Governo Federal, as ferrovias brasileiras transportam aproximadamente 15% da produção nacional. Enquanto isso, as ferrovias americanas transportam cerca de 40%. A densidade ferroviária brasileira é oficialmente de 3,1 m/km2 – na realidade esse número é bem pior, cerca 2 m/km2, se descontarmos os trilhos abandonados da equação –, a densidade ferroviária americana é de 150 m/km2, i.e., 48 vezes superior à brasileira.

Os EUA têm a maior economia do mundo porque têm uma infraestrutura de transportes densa e capilarizada ou têm uma infraestrutura densa e capilarizada porque têm uma economia robusta? A resposta óbvia é que não existe economia desenvolvida se não houver infraestrutura de transportes em abundância.

A escassez da infraestrutura de transportes brasileira sinaliza um dos motivos pelos quais a produtividade e a competitividade brasileira no cenário internacional e doméstico são tão criticadas. Ainda assim, apesar de uma infraestrutura logística tão ruim, o Brasil ocupa papel de destaque na produção e exportação de certas commodities, entre elas a celulose. Nas últimas décadas, Bracell, Eldorado e Suzano entre outras empresas ajudaram a catapultar o Brasil para o primeiro lugar na exportação de celulose, com uma produção anual de cerca de 23 milhões de toneladas, deixando EUA, Canadá e China para trás no ranking de exportação.

Desafios da Migração Logística das Rodovias para as Ferrovias

Como se é de se suspeitar pela introdução desse texto, nossa logística de celulose é significativamente depende do modo rodoviário, extremamente caro antiecológico quando comparado aos nossos competidores globais. Entretanto, temos visto nos últimos anos significativos esforços das plantas brasileiras de celulose na migração de sua logística das rodovias para as estradas de ferro.

As três maiores indústrias de celulose no país em alguma medida já transportam parte de sua produção por trem por meio dos portos de São Luís e Santos. Mas, a partir de 2021, quando a nova legislação ferroviária entrou em vigor, essas empresas iniciaram um processo de ferrorização de suas estratégias logísticas. Essas empresas requereram autorização para construção de novas estradas de ferro, de suas plantas diretamente para a malha concedida atual, o que poderá, no futuro, viabilizar o transporte “porta a porta” de suas plantas fabris até os portos de exportação, gerando novos corredores fábrica-ferrovia-porto.

O caso mais avançado é o da Eldorado, situada em Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. Atualmente 100% da produção de exportação da Eldorado em Três Lagoas faz algum tipo de trânsito rodoviário para quatro diferentes portos: Santos, em São Paulo; Paranaguá, no Paraná; Itapoã e Navegantes, em Santa Catarina.

Em 2019, a Eldorado arrematou os direitos para a construção e operação de um terminal portuário dedicado no Porto de Santos. Este terminal, com capacidade para 3 milhões de toneladas/ano foi desenhado para ser alimentado via caminhões e trens de até 72 vagões. Em 2021, a empresa requereu a construção de uma nova linha férrea de cerca de 90 km, entre sua planta em Três Lagoas e a malha da Rumo em Aparecida do Taboado.

A construção dessa nova estrada de ferro pode representar para a logística da Eldorado uma migração de mais de 60% de sua produção para o modo ferroviário, criando um link direto entre a fábrica e o porto, não só reduzindo custos, mas melhorando a produtividade da empresa.

Com a ampliação da planta, dos atuais 1,8 milhões para 4,5 milhões de ton anuais, cerca de 30 mil caminhões deixariam de circular, o que representaria uma redução na emissão de CO2 de 120 mil ton anuais.

A migração de 60% da produção da Eldorado do modo rodoviário para o ferroviário pode custar cerca de R$ 1,8 bilhão, em capex, cerca de 7,5% do custo de implantação de sua nova planta fabril, segundo se pode estimar das informações públicas já disponíveis. Este seria um custo relativamente baixo, se comparado aos ganhos econômicos com o descomissionamento da frota de caminhões, consumo de diesel e habilitação para financiamento verde, devido a implantação de uma solução logística mais sustentável.

Além disso, a Eldorado se cacifa com a iniciativa em outras vantagens econômicas com a implantação da nova linha férrea, seja no incremento das oportunidades de negócio com a Rumo, incumbente do tronco principal da linha até Santos; possibilidade de composição na Ferrovia Interna do Porto de Santos (FIPS), e até mesmo compartilhamento de sua linha privada para Três Lagoas, para uso por outras empresas da região. A nova a linha da Eldorado inclusive poderia ser usada no transportes de grãos na região, tanto no sentido exportação, como também para o mercado interno, na provisão de fertilizantes e milho para o Sul do país.

Obviamente a implementação de uma nova solução logística exige diversas etapas, como autorizações ambientais, desapropriações, ambas já garantidas em suas primeiras fases; negociações de preço com outras ferrovias; articulações com agentes governamentais, elaborações de projetos de engenharia, aquisição de material rodante, contratação de mão de obra especializa etc. e por isso mesmo o projeto precisa de tempo para sair do papel.

Esse projeto, no entanto, merece ser celebrado e incentivado, tanto por suas externalidades positivas, quanto pelo seu caráter educativo para o resto da indústria brasileira, hiper dependente da logística rodoviária. A ferrovia da Eldorado é o mais avançado caso de ferrovia federal autorizada que está saindo do papel, mas não pode, nem deve ser o único.

Quando observamos os dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), percebemos que 72% da extensão ferroviária requerida à União, em novos projetos por autorização, está em processo de obtenção de licença prévia em tramitação, mas apenas a Eldorado obteve a licença requerida. A lentidão na obtenção da licença prévia na imensa maioria dos casos solicitados talvez seja um indicativo de os processos de licenciamento ambientais de ferrovias precisam ser aperfeiçoados. O modo ferroviário é notavelmente mais sustentável que o modo rodoviário. Além disso o Brasil precisa tanto de investimentos verdes quanto de adequação de sua matriz de transportes para poder se conformar aos ditames de competividade mais sustentáveis do século 21.

À guisa de exemplo, podemos inferir que se somente 10% dos projetos requeridos e já contratados no plano federal forem de fato concluídos, poderiam ser construídos 1.254km de novos trilhos à escassa malha ferroviária nacional. Um êxito de 10% também representaria investimentos privados de cerca de R$ 24 bilhões de reais, segundo pode-se estimar dos dados da ANTT. Um alívio fundamental nas contas públicas, que não por acaso, passa atualmente por mais um revés fiscal. Sem falar na possibilidade de geração de mais de 100 mil empregos diretos, novos negócios, produtividade e lucratividade, além de redução do consumo de combustíveis fósseis, emissão de poluentes, perdas em acidentes rodoviários, gastos sociais etc..

Essa é, no entanto, uma estimativa muito conservadora, se comparamos com o projeto de ferrovia autorizada mais antigo e avançado do país: a Ferrovia Estadual Senador Vicente Emílio Vuolo, que ligará os municípios de Rondonópolis, Lucas do Rio Verde e Cuiabá, no estado de Mato Grosso, em execução pela Rumo.

O projeto da autorização estadual da gigante logística Rumo, que detém os direitos de exploração de 5 concessões ferroviárias federais, prevê a construção de 730 quilômetros de trilhos e um investimento de R$ 11,2 bilhões. O avanço físico da Ferrovia Vicente Vuolo, da Rumo, é ainda mais robusto que o da Eldorado, posto que já conseguiu não apenas as licenças ambientais, como já iniciou a contrução da ferrovia em seus primeiros 100 km a partir de Rondonópolis em direção à Lucas do Rio Verde.

Benefícios da Nova Legislação Ferroviária e Perspectivas Futuras

A nova legislação ferroviária trouxe para o Brasil uma oportunidade singular de cooperação entre o setor público e o setor privado para a redução dos gargalos logísticos. O êxito da Eldorado e da Rumo representam os primeiros passos, mas não podem ser os únicos. A indústria brasileira, não apenas de exportação de celulose e de grãos, não apenas produtora de commodities, deve, juntamente com os governos federal e estaduais, perceber que a implantação de novos trilhos é essencial para o aumento da produtividade brasileira, recuperação da economia, satisfação da sociedade.

Evidentemente, a implantação de uma nova política pública fundamentada integralmente no investimento privado, em um cenário onde a maior parte das rodovias foi ou está sendo implementada, direta ou indiretamente, com recursos públicos, não se configurará como um processo isento de aprendizados e ajustes necessários. Nesse contexto, emerge a questão sobre quais modelos de financiamento, disponibilizados por bancos públicos, podem ser adequados para fomentar esses empreendimentos, e até que ponto os entes públicos poderiam ser legitimados para auxiliar nos trâmites burocráticos e regulatórios que tais empreendedores inevitavelmente enfrentam.

Ademais, suscita-se a reflexão sobre de que maneira a legislação tributária poderia contribuir para corrigir o desequilíbrio atual da matriz de transporte, majoritariamente rodoviária. Embora se observe um avanço significativo, é inegável que ainda há vasto espaço para aprimoramentos, visando a constituição de um ambiente negocial mais atrativo e seguro para o setor privado

Uma concertação mais eficiente poderia permitir que mais e mais indústrias possam se beneficiar de projetos ferroviários flexíveis, feitos sob demanda, para supressão de gargalos logísticos, aumento de capacidade e de produtividade, com efeitos diretos na economia nacional e indiretos na vida de todos os brasileiros. Para tanto, impasses regulatórios e tarifários devem ser tratados com mais diligência pelas autoridades regulatórias, a fim de que o Brasil de fato possa entrar nos trilhos do século 21. As ferrovias sempre ajudaram o Brasil, está na hora do Brasil entender que precisa ajudar as ferrovias para poder se desenvolver como nação.

Ainda que seja óbvio que haverá uma taxa de mortalidade significativa nas autorizações, seja pela dificuldade de captação de recursos no modelo de project finance, seja pela impedância na obtenção de licenciamentos ambientais ou desapropriações, seja até mesmo pelas limitações institucionais do país convergir rapidamente para a aplicação das melhores práticas regulatórias que assegurem tarifas de compartilhamento de infraestruturas competitivas e impeditivas de práticas antieconômicas dos agentes econômicos, o fato é que o êxito das ferrovias autorizadas representa incremento logístico de qualidade para à economia nacional, a exemplo dos casos de sucesso da Eldorado no Mato Grosso do Sul e da Rumo no Mato Grosso.

Considerações Finais

O fomento às iniciativas do mercado na construção de uma nova e distribuída rede ferroviária nacional, tão vasta que poderia viabilizar a adoção de trilhos porta a porta, representa uma oportunidade única para o Brasil modernizar sua infraestrutura de transporte e impulsionar o desenvolvimento econômico. Com a redução dos custos logísticos, as empresas poderiam investir mais em inovação e expansão, gerando empregos e fortalecendo a economia nacional. Além disso, a diminuição das emissões de gases poluentes contribuiria para um futuro mais sustentável, alinhando o país com as metas globais de preservação ambiental.

Para que essa visão se torne realidade, é fundamental que o governo e as empresas trabalhem juntos na aplicação efetiva dos avanços trazidos com a Lei nº 14.273, de 2021, aperfeiçoando as políticas públicas que incentivem o investimento em infraestrutura ferroviária. A implementação de novos trilhos no Brasil exige não apenas recursos financeiros, mas também uma mudança de mentalidade e a adoção de novas tecnologias que tornem o transporte mais eficiente e seguro. Com um esforço conjunto, o Brasil pode transformar seu sistema de transporte e alcançar um novo patamar de desenvolvimento sustentável.