por Marcos Kleber R Felix
O retorno da iniciativa privada ao transporte ferroviário de passageiros no Brasil está sendo significativo, após quase um século de ausência em novos projetos greenfield, notadamente impulsionado pela nova Lei das Ferrovias de 2021.
Este artigo explora esse fenômeno, destacando as diferenças entre o modelo atual e o do século XIX, e discute as oportunidades e desafios que este retorno propiciado pela Lei das Ferrovias representa para o futuro do transporte ferroviário no Brasil.
O Retorno do Capital Privado
O regresso atual é diferente do modelo iniciado nos anos 1800, quando o principal objetivo do capital era prover escoamento para as crescentes plantações de café nos sertões do Brasil, notadamente a partir de São Paulo. Este movimento gerou diversas cidades ao longo dos caminhos de ferro que saiam de Santos, até o Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Paraná.
Neste retorno o fundamento do interesse está na possibilidade de se alcançar lucratividade na exploração econômica da mobilidade e do desenvolvimento urbano, em resposta ao esgotamento das alternativas atuais de transportes em cidades cada vez mais engarrafadas em vias congestionadas.
Tal fenômeno não é uma exclusividade do Brasil. Os Estados Unidos estão experimentando, com alguns anos de vantagem, o regresso do capital privado aos investimentos em ferrovias americanas de passageiros, notadamente com projetos na Flórida, Califórnia, Nevada e Texas.
A Nacionalização das Ferrovias de Passageiros Brasileiras
A crise da Bolsa de Nova Iorque em 1929 interrompeu completamente o avanço ferroviário brasileiro, que era muito dependente do escoamento de café. As ferrovias de passageiros que possuíamos eram uma consequência do transporte do café, transportar os colonos e imigrantes entre as zonas produtoras. Com o declínio do café e o avanço dos investimentos em rodovias e aeroportos, essas ferrovias naturalmente perderam sua importância.
As políticas públicas que se seguiram, destinadas a reagir à competição com os modos rodoviário e aéreo, afastaram a iniciativa privada das ferrovias brasileiras. As ferrovias acabaram sendo completamente nacionalizadas após a Segunda Guerra Mundial, em um movimento de estatização generalizada que ocorreu na maioria dos países do mundo, com notáveis exceções como os EUA e o Japão.
No Brasil, a nacionalização ferroviária culminou com a criação da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), em 1955. A RFFSA foi posteriormente dividida, gerando a CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos) no início dos anos 1980, em uma clara imitação do movimento de criação da Amtrak nos EUA no início dos anos 1970.
A RFFSA cuidaria da logística e a CBTU do transporte de passageiros, assim como as ferrovias privadas americanas cuidariam do lucrativo transporte de cargas e a estatal americana cuidaria do deficitário transporte de passageiros. Por várias razões, diferentemente do que acontecia nos EUA, o transporte ferroviário de cargas no Brasil não era lucrativo, nem o de passageiros.
Com a Constituição de 1988 e um amplo processo de descentralização da União no campo ferroviário, a RFFSA foi privatizada por bacias geográficas em contratos de 30 anos, dando origem às atuais concessões ferroviárias da Rumo, Transnordestina e FCA (Ferrovia Centro-Atlântica), gerida pela VLi. A CBTU foi desmembrada em superintendências regionais que gradualmente foram sendo transferidas para os Estados.
O Retorno da Competividade Ferroviária
O esgotamento dos modos rodoviário e aéreo e o avanço tecnológico dos trens de altas velocidades têm criado condições ideais para o regresso do capital privado às ferrovias de passageiros, em ramos historicamente explorados pela CBTU e outros totalmente novos. O novo modelo de investimento serve justamente para atender as demandas onde o automóvel ou os aviões não são tão competitivos, nos nichos onde as viagens são muito demoradas para se viajar de carro ou de ônibus e muito curtas para se viajar de avião.
Com base nesta lógica de competição intermodal, a iniciativa privada está regressando ao transporte ferroviário de passageiros. Nesse contexto, os trens, que podem facilmente alcançar mais de 100km/h, se tornam a melhor opção em termos de tempo de viagem para o passageiro. Os modernos trens de passageiros são mais competitivos em regiões metropolitanas densamente ocupadas por vias rodoviárias congestionadas.
Vemos esse retorno em duas frentes: nas autorizações ferroviárias, que já sinalizaram interesse em investir em três novas linhas greenfield, em um movimento mais agressivo de investimento, e nas concessões de trens intercidades e de metrô, em um movimento mais conservador de investimentos, notadamente nos Estados de São Paulo e Minas Gerais.
A tabela a seguir sintetiza os três projetos de trens de passageiros solicitados pelo mercado após o advento da Lei das Ferrovias de 2021:
Ferrovia | Extensão (km) | Velocidade máxima (km/h) | Ano Provável de Inauguração | Tempo de viagem | Vel média(km/h) | Investimento em R$ bilhões |
Porto Alegre a Gramado | 85 | 150 | 2034 | 1h | 85 | 3,8 |
Brasília a Luziânia | 65 | 160 | 2036 | 42min | 93 | 4 |
São Paulo a Rio de Janeiro | 380 | 350 | 2032 | 1h30min | 253 | 50 |
O projeto da Sultrens para a rota Porto Alegre – Gramado destina-se a oferecer uma alternativa de viagem mais confortável para os 6 milhões de turistas que vistam Gramado e Canela anualmente a partir do Aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre, com uma economia de pelo menos 1 hora de viagem. Projetado para capturar 1/3 dessa demanda, o serviço deve oferecer amenidades aos passageiros, como wi-fi abordo e refeições leves. Além de pontos de compras, entretenimento e hospedagem nas extremidades da ferrovia. A autorização para construção dessa ferrovia está em análise atualmente pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul.
O projeto Expresso Planalto Central caracteriza-se por ser uma ferrovia greenfield, de média velocidade, de 63,74 km, conectando Luziânia, em Goiás a Brasília. Planejada pela OTMZA LABS, o projeto pretende alterar a velocidade média do percurso rodoviário de 35 km/h para mais de 90 km/h, com um total de 10 estações ao longo do percurso, que majoritariamente utilizará a faixa de domínio da BR-040 como caminho. A autorização para este projeto está em análise na ANTT.
O último projeto desta lista é um velho conhecido do Brasil, que inclusive já recebeu a outorga de autorização do Governo Federal. O trem de alta velocidade entre Rio de Janeiro e São Paulo tentará capturar parte da demanda diária de viagens entre as duas maiores cidades brasileiras, além de do pujante Vale do Paraíba.
O retorno da iniciativa privada ao transporte ferroviário de passageiros no Brasil
Diferentemente da primeira ferrovia privada do Brasil, construída pelo Barão de Mauá no Rio de Janeiro há 170 anos, que visava prioritariamente o transporte de cargas entre a capital da corte e as serras fluminenses, essas novas ferrovias privadas visam capturar a demanda pelo transporte de pessoas, seja para fins turísticos, seja para fins ordinários de comutação diária.
Esses novos projetos não buscam se rentabilizar exclusivamente pela remuneração do passageiro na aquisição da viagem, mas pelos diversos negócios periféricos que podem ser criados nos entornos das estações. A lucratividade dessas novas ferrovias privadas do século 21 virá notadamente pela exploração imobiliária no entorno das estações, que nos respectivos anos de abertura deverão ter um faturamento médio mínimo de 11%, segundo seus proponentes.
Já as concessões usam uma lógica de crescimento baseada na exploração de um ativo consolidado para a construção de um novo. Tanto na desestatização do metrô de Belo Horizonte, quanto na desestatização do Trem Intercidades de São Paulo, serão construídas novas linhas apoiadas na receita já consolidada de duas antigas linhas que um dia já pertenceram à CBTU.
Em todos esses casos, a demonstração de interesse do mercado em voltar ao transporte de passageiros é um bom sinal para o futuro da mobilidade do Brasil, que poderá ser finalmente vista como uma oportunidade de geração de desenvolvimento econômico, social e ambiental para as cidades brasileiras.